“Sobre os ombros das mulheres repousa metade do Universo”
Mao Tsé-Tung

 

De acordo com a literatura de referência sobre o bem-estar subjectivo, popularmente conhecido como felicidade, este pode ser traduzido como a resposta conjunta a quatro dimensões estruturantes, a saber: o grau de felicidade, a satisfação com a vida, a avaliação do estado de saúde e o nível de conforto com que se vive. O gráfico e o quadro seguintes, sumarizam as respostas das portuguesas em cada uma delas, recolhidas pelo Inquérito Social Europeu no período compreendido entre 2002 e 2016³.

As portuguesas consideram-se mais felizes do que satisfeitas com a vida. Certamente que as condições materiais de vida não serão alheias a isso. Os mais velhos lembrar-se-ão, certamente, de uma frase conformista que se tornou popular no consulado salazarista: pobretes, mas alegretes. Com a idade, tanto a felicidade como a satisfação com a vida, decrescem ligeiramente, mas registam sempre valores superiores ao centro da escala.

Tanto a avaliação do estado de saúde como o rendimento disponível pioram significativamente com a idade. Saliente-se o decréscimo acentuado da avaliação do estado de saúde a partir dos 65 anos, é concomitante com a diminuição do rendimento disponível.

Um dado interessante sobre a percepção da felicidade, é a comparação europeia da resposta que os homens e as mulheres dão à seguinte pergunta: Considerando todos os aspectos da sua vida, qual o grau de felicidade que sente? Os resultados são claros e evidenciam dois padrões distintos: na Europa do Norte, mais igualitária, as mulheres avaliam-se como mais felizes do que os homens, sucedendo o inverso na Europa do Sul, menos igualitária. A Finlândia regista a maior diferença em favor delas e Portugal a maior em favor deles.

Não surpreende assim, relativamente às mulheres portuguesas, que Mao possa ter errado quando disse que “sobre os ombros das mulheres repousava metade do universo”, pois os dados revelam que deve ser bastante mais. Tal dever-se-á ao facto de, tradicionalmente, caber às mulheres a maior parte das tarefas domésticas e relacionadas com o cuidar. Dados do Eurobarómetro mostram que há um gap entre homens e mulheres na realização das tarefas domésticas e nos cuidados, que é comum em todos os países europeus. Elas trabalham, em média, mais horas do que eles, sendo a diferença média na Europa de 10,7 horas. Portugal está entre os países com o gap mais elevado, 13,5 horas. Ora sendo a felicidade relacional, o bem-estar dos outros – se estão doentes, desempregados, etc. – afecta a percepção da felicidade. Por exemplo, muitos dos estudos sobre o absentismo laboral, que concluem que este é mais elevado nas mulheres, escamoteiam o facto de isso se dever, precisamente, à distribuição desigual entre os homens e as mulheres, dos cuidados de saúde dos familiares. As mulheres faltam mais ao trabalho do que os homens para cuidar do companheiro, dos filhos, de outros familiares próximos, etc.

Podemos assim concluir, que a maior ou menor percepção da felicidade dos homens e das mulheres não é uma questão de género, mas de cultura. A tradicional preocupação com o cuidar e a divisão das tarefas domésticas não serão, certamente, estranhas à posição de Portugal, onde a educação dos rapazes e das raparigas ainda segue padrões sexistas assentes na diferença de género. Um bom exemplo é o que acontece com o tipo de prendas natalícias. Às meninas oferecem-se bonequinhas, cozinhas, etc. e aos meninos, carrinhos, bolas, etc. É como se de muito pequeno se prescrevessem os papéis de género no futuro: elas em “casa” e eles na “rua”. Ou como canta Sérgio Godinho: é “de pequenino que se torce o destino”.

¹Publicado na Revista [Sem] Equívocos nº 12, Outono 2019
²Sociólogo e professor universitário (rui.brites@outlook.com)
³Rounds 1 a 8. Em Portugal os dados do round 8 foram recolhidos apenas em 2017.