O que se segue depois da família? Muito simplesmente a família! Apenas diferente, mais e melhor: a família negociada, a família alternativa, família múltipla, novos arranjos depois do divórcio, recasamento, novo divórcio, novas combinações dos teus,meus ou nossos filhos, das nossas famílias passadas e presentes

Elizabeth Beck Gernsheim

Contrariando as teses sobre o fim da família, Anália Torres tem demonstrado nos seus estudos que os processos de transformação da família se constituem como importantes lugares de debate entre o público e o privado e se mantém bastante actuais. Como mostram os dados do Inquérito Social Europeu, entre diversos aspectos da vida em sociedade, a família é mesmo o mais valorizado na vida dos europeus, tanto por homens, como por mulheres:

Importância da Família, Amigos, Tempos livres, Política, Trabalho, Religião e Voluntariado, na vida dos europeus, por sexo (médias)

 

Escala: 0=nada importante; 10=extremamente importante
Mostrando a importância e a prevalência que as pessoas dão à família, estes resultados, que não surpreendem os sociólogos desta área, podem constituir alguma surpresa para um público mais vasto. Ecos persistentes da ideia de crise da família parecem, ao menos superficialmente, contradizer esta hierarquia de valores, que permanece ao longo das últimas duas décadas extremamente consistente, como vários inquéritos têm mostrado. Já a escolha dos amigos e do lazer para segundo e terceiro lugar é possível que constituam alguma novidade, pois relativiza e “desimportantiza” a religião, o trabalho voluntário e a política.
No conjunto dos sete aspectos considerados, verifica-se que são mais as semelhanças do que as diferenças entre homens e mulheres. Com efeito, a ordem de importância de cada um deles é a mesma até à quarta posição, surgindo a falta de consenso na religião, último lugar neles e quinto nelas, e na política, onde se verifica o inverso. Eis um resultado que também tende a contrariar o senso comum. Com efeito, é voz corrente que as mulheres valorizam muito mais do que os homens a família e que apostam muito menos do que eles no trabalho, e que em contrapartida os homens hierarquizariam estes aspectos da vida exactamente da maneira oposta: trabalho primeiro, família depois. Ora o que se passa é que a hierarquia é exactamente a mesma para os dois sexos.
Ainda de acordo com os dados do Inquérito Social Europeu, outro indicador da importância da família para os europeus, neste caso da família mais próxima, confirma estes resultados, com 85,7% dos inquiridos a concordarem que a família mais próxima deve ser a prioridade principal na vida das pessoas. Portugal (81,9%) regista valores inferiores à percentagem média. Saliente-se, ainda, que na sua esmagadora maioria, os europeus consideram que o tempo passado em família é agradável e pouco stressante, mais para elas do que para eles.
Ainda de acordo com os dados do Inquérito Social Europeu, outro indicador da importância da família para os europeus, neste caso da família mais próxima, confirma estes resultados, com 85,7% dos inquiridos a concordarem que a família mais próxima deve ser a prioridade principal na vida das pessoas. Portugal (81,9%) regista valores inferiores à percentagem média. Saliente-se, ainda, que na sua esmagadora maioria, os europeus consideram que o tempo passado em família é agradável e pouco stressante, mais para elas do que para eles.
No entanto, quando saímos do plano dos valores e nos centramos nas práticas, a realidade é bem diferente. Tanto na Europa como em Portugal, são as mulheres que gastam mais tempo em tarefas domésticas no dia-a-dia. Entre os que dizem que não gastam “nenhum tempo ou quase nenhum” com tarefas domésticas, os homens são cerca do dobro das mulheres na Europa e o triplo em Portugal. Ou seja, se no capítulo das tarefas domésticas as mulheres na Europa estão claramente sobrecarregadas em relação aos homens, em Portugal estão ainda mais. Dados do Eurobarómetro mostram que as mulheres gastam em média por semana cerca de 24 horas nas tarefas domésticas e a cuidar das crianças e da família, enquanto os homens gastam apenas cerca de 13 horas. O gap entre homens e mulheres é comum a todos os países e desfavorável às mulheres, significando, por conseguinte, que elas trabalham, em média, mais do que os homens em tarefas domésticas e cuidados familiares. A diferença média no conjunto dos países é de 10,7 horas. Portugal está entre os países com o gap mais elevado (13,5 horas). Como nota Anália Torres: “A discriminação e a sobrecarga feminina nos cuidados com os filhos e com a casa não é novidade, num país que remunerou sempre mais a função produtiva do que a reprodutiva”. Não surpreende assim que em todos os países europeus, sejam os homens que mais dizem estarem satisfeitos com a divisão das tarefas domésticas, 87,9% contra 71% de mulheres. É conhecida a célebre proclamação de Mao Tsé-Tung, de que “as mulheres sustentam a metade do céu”, interpretada como um grito pela igualdade de mulheres e homens, não obstante, no que se refere aos papéis familiares, especialmente na Europa do Sul, mais católica e conservadora, as mulheres “sustentam mais de metade do céu”. A desigualdade de papéis familiares é, aliás, produzida e reproduzida no seio da família. Às meninas oferecem-se brinquedos relacionados com os cuidados do lar – cozinhas, bonecas, etc. – e aos rapazes oferecem-se carrinhos bolas.

Rui Brites 2

¹Mais informação em Brites, R., Valores e felicidade no Século XXI: umretrato sociológico dos portugueses em comparação europeia, disponível em https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/2948, p.p. 161-171.
² Sociólogo e professor universitário (rui.brites@outlook.com)

Publicado na Revista [Sem]Equívocos, nº7, Verão 2018