Não é feliz quem quer, só quem quer e quem pode
Falar de felicidade, no seu sentido mais amplo, é falar de bem-estar subjectivo enquanto tradutor das respostas emocionais das pessoas em domínios como a satisfação com a vida, a saúde e as relações interpessoais, bem como as avaliações que fazem sobre a sociedade e a governação. Na sua essência, o bem-estar subjectivo é uma atitude que possui duas componentes básicas: afecto e cognição. A cognição refere-se aos aspectos racionais e intelectuais, o afecto às componentes emocionais. Ou seja, a nossa percepção sobre a felicidade é simultaneamente racional e emocional. Sobre o papel das emoções não me pronuncio aqui, pois não tenho “arte e engenho” para tal. A minha perspectiva é a sociológica, racional, portanto, dando resposta ao subtítulo do texto: quem pode ser feliz.
O relatório elaborado pela chamada “Comissão Stiglitz” nomeada pelo então presidente francês Sarkozy² considera que o nível de conforto com que vivemos, a saúde e a escolaridade são três das dimensões com grande impacto na percepção individual do grau de felicidade. O quadro seguinte, que compara Portugal com a nossa vizinha Espanha e a Noruega, considerado o país mais feliz do mundo segundo o último Relatório Mundial da Felicidade das Nações Unidas permite-nos perceber a relação entre as três dimensões e a percepção da felicidade.
Como podemos observar, a primeira nota a salientar é que mais dinheiro, mais escolaridade, excepto na Noruega e melhor saúde têm mais impacto na perceção da felicidade. Os cínicos dirão que vale mais ser rico e ter saúde do que ser pobre e doente. A felicidade é do domínio do ser: somos mais ou menos felizes; não do ter: estamos mais ou menos satisfeitos. Perceber a relação entre o ser e o ter é, assim, essencial quando pretendemos encontrar explicações para a percepção individual da felicidade. Na literatura abundam as referências a esta relação. Sempre que me perguntam se o dinheiro dá felicidade, a minha resposta é que não, o dinheiro não dá nada… compra quase tudo. Mas não compra a felicidade, pois a mesma é um processo incessante de busca individual, “compra” satisfação, que é preditora da felicidade. A relação entre dinheiro e a felicidade é complexa e não é linear. Sabe-se que mais dinheiro pode não ser sinónimo de mais felicidade – paradoxo de Easterlin – mas a evidência empírica mostra que a falta de dinheiro para viver com algum conforto, dá infelicidade. Como diz a sabedoria popular: em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.
É nesta perspectiva que podemos perceber a relação entre escolaridade e felicidade. A relação não é directa, está associada ao facto de os mais escolarizados terem melhores empregos, melhores salários e mais oportunidades de mercado. Já a relação com a saúde tem que ser vista de outra forma, especialmente a partir dos 65 anos. Até aos 65 anos, cerca de 55% dos portugueses avaliam o seu estado de saúde como bom e muito bom, na Noruega são cerca de 80% e em Espanha 68%. Mas depois dos 65 anos, em Portugal são 21%, 67% na Noruega e 38% em Espanha. Ou seja, os portugueses avaliam sua saúde pior do que os noruegueses e os espanhóis. Não tenho uma explicação para isto, a não ser pensar que os portugueses são “piegas” como lhes chamou o então Primeiro-ministro Passos Coelho. Mas talvez a explicação resida no receio que os portugueses têm de que o dinheiro disponível não chega para fazer face às despesas com a saúde, que naturalmente, se agravam com a idade.
A principal conclusão que podem extrair destes dados é que os portugueses são mais pobres do que os espanhóis e os noruegueses e que isso tem reflexo na sua percepção da felicidade e da sua saúde. Também, como bem sabemos, os portugueses são mais resignados e, como observou Amartya Sen: “o rabugento homem rico poderá muito bem ser menos feliz do que o resignado camponês, mas a verdade é que tem um padrão de vida mais elevado do que ele”.
Publicado na Revista [Sem]Equívocos, nº 9
Rui Brites 1
¹ Sociólogo e professor universitário (rui.brites@outlook.com)
²Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/documents/118025/118123/Fitoussi+Commission+report