Os lares de idosos em Portugal são vistos pela generalidade da população como o outro lado da vida onde ninguém deseja estar.
Carregados de estigma e preconceito, tornaram-se autênticos locais de espera da morte em condições indignas.
Esta é a opinião e a ideia da maioria da população portuguesa e, retirando uns poucos que fazem da sua vida profissional a luta diária contra essa opinião, não existe qualquer ação que altere a situação.
Podíamos analisar mais profundamente as razões desta situação, mas isso demoraria certamente muito tempo, para além de existirem poderes instituídos de grandes corporações que prefere manter a situação atual do que discuti-la e transformá-la.
A comunicação social que por vezes tenta colocar na primeira linha esta discussão, não vai também muito longe, deparando com uma cortina assente num modelo caritativo e assistencialista que custa a contrariar e que até é mal visto quando se põe em causa.
Reguengos de Monsaraz saltou para as primeiras páginas ao ter registado um numero significativo de pessoas idosas infetadas com COVID 19 e com um grau de letalidade, ainda longe da evidencia cientifica mas que tenderá a aumentar com o tempo e a atingir esse numero.
Mas Reguengos de Monsaraz só serve para mais uma vez escondermos o essencial.
Para além de encerrar um problema de luta política pessoal está a fazer crer que os problemas surgidos são específicos daquela situação, escondendo a realidade nacional que é bem pior e colocando de lado questões essências que a todos deviam preocupar.
A mediatização do caso de Reguengos parece ter a ver exclusivamente pelo envolvimento de médicos.
Médicos?
Lares de Idosos e médicos são incompatíveis. Nunca na legislação portuguesa houve uma referência à existência de médicos, sua presença e funções, sua responsabilidade e envolvimento, em lares de idosos. Confrontada com a situação pela Associação Amigos da Grande Idade, a Ordem dos Médicos respondeu-nos há alguns anos que esta ausência da presença de médico em lares de idosos era bem vista pela classe, pelo menos não os envolvia no pântano que são os cuidados a pessoas idosas em lares de idosos.
Mas Reguengos começa por aí, distraindo as pessoas: o ministério publico, profundo desconhecedor e de costas sempre voltadas para as denuncias sobre lares de idosos, manda a ordem dos médicos fazer um inquérito. Estamos com certeza a brincar. A brincar com coisas sérias e com a vida das pessoas.
Quantos médicos existem em Portugal conhecedores da realidade interna de um lar de Idosos? Quantos médicos tem autoridade para auditarem lares de idosos se só lá entraram quando algum dos seus familiares esteve institucionalizado?
É certo que os médicos vão aos lares de idosos. Mas quem lá trabalha sabe como esse trabalho é feito: uma vez por semana ou uma vez por mês, prescrição às cegas de medicação. Inexistência de quaisquer registos clínicos, certidões de óbito passadas à distância por internet e nenhuma ligação a outros serviços de saúde quando de internamentos hospitalares, consultas de rotina ou outros incidentes críticos.
Mas também sabemos que a ética médica nesta área vai mais longe. Não se coíbe de fazer umas horas a prescrever medicação nos lares ilegais, que sabem que são ilegais. É esta essencialmente a ação dos médicos nos lares de idosos no modelo que desenvolvemos.
Na situação concreta de Reguengos de Monsaraz a decisão dos superiores regionais foi enviar médicos para o lar… os resultados estão hoje à vista e ainda não fizemos as contas finais.
Desidratação e doenças crónicas descompensadas, tem sido o habitual durante anos e até ao presente, configurando as “normais” práticas criminosas de maus tratos que tem sido noticiadas frequentemente e denunciadas por entidades, associações e familiares dos idosos.
No relatório é citado que faltava tudo, desde gente para cuidar e de alguém responsável que informasse os médicos das doenças que tinham e que medicações tomavam.
Na maioria dos lares, quem administra a medicação sempre foram as auxiliares e é frequente serem as mesmas ou as responsáveis dos lares, juntamente com as diretoras técnicas da área do social que preparam a medicação, não havendo nenhum controlo na administração de psicotrópicos durante o período da noite, sendo administrado pelas mesmas, não sendo possível um adequado ajuste terapêutico visto não terem qualquer tipo de conhecimento dos efeitos secundários.
Quanto ao não haver registo clínico é outra das situações comuns em instituições desta natureza, pois sendo visto erradamente, como fazendo parte do social, as questões de saúde são frequentemente negligenciadas. O que a segurança social, erradamente exige, é a anotação pelas auxiliares no “livro de ocorrências”. Processo arcaico e completamente fora de contexto para a realidade dos lares. Sendo “suficiente” para a entidade fiscalizadora, visto os incumbidos pela segurança social que normalmente efetuam as “fiscalizações”, não são dotadas dos conhecimentos necessários para a identificação das situações que colocam em risco a vida dos idosos.
Referem também que na auditoria detetaram a falta de médicos e enfermeiros. Também não detetamos nenhuma anormalidade em relação a um grande número de instituições, sendo uma das atitudes economicistas das mesmas e um enorme desconhecimento sobre envelhecimento, podendo ser evitadas com uma fiscalização competente pelas entidades fiscalizadoras.
As entidades fiscalizadoras têm perfeitamente conhecimento de que existem instituições de todo o País que não tem enfermeiro permanente, sendo também uma das lacunas da lei arcaica, em que define os rácios dos colaboradores.
Também temos conhecimento de médicos contratados por outras instituições em situações muito mais graves do que aquela que é referida, em que recusaram visitar os residentes após terem conhecimento de estarem infetados. Há casos de direções de instituições que nunca compareceram, nem participaram nos planos de contingência nem em qualquer outro tipo de apoio aos residentes e colaboradores durante a pandemia. Simplesmente não apareceram nem contribuíram para melhorar as condições e corrigir a falta de condições. Incorrendo seguindo a lei num possível crime de abandono. Tendo a diretora da segurança social tido conhecimento atempado da situação.
É abordado que segundo a lei e após conhecimento da autoridade de saúde pública local do surgimento de um surto de covid-19, deve obrigatoriamente ser visitado pelos mesmos. O que de facto também não aconteceu por outros lados. Não se registando a presença de qualquer técnico da segurança social ou entidade local para verificar pessoalmente quais as condições e se as medidas estavam a ser cumpridas.
O que depreendemos desta auditoria, é que só a palavra de um médico, após a visita ao lar de Reguengos, é tida em consideração e detrimento de enfermeiros e demais técnicos, não valorizando queixas de familiares, que ao longo dos anos tem participado uma panóplia de casos por todo o território nacional no antes e durante a pandemia. Falta também uma tomada de posição em relação aos lares ilegais que abundam, sem registo do número de idosos e das condições em que são “albergados”.
De referir que situações desta natureza, tem sido alvo de variadíssimas denúncias de familiares e da nossa associação, sendo transmitidas pelos variadíssimos órgãos de comunicação social e em que recentemente foram apresentadas imagens de vídeo que demonstram as agressões barbaras que os idosos sofrem nas instituições e que originaram a morte dos mesmos. Não se verificou até a data nenhuma auditoria digna desse nome para determinar uma situação desta gravidade e tão frequente em várias instituições.
O que lamentamos profundamente é que esta situação não sirva para colocar em causa o modelo de intervenção e toda a organização nacional dos cuidados e serviços destinados a pessoas idosas.
Concluímos que, após centenas de mortes evitáveis, tudo ficará na mesma justificado por um ou outro caso mediatizado em que a culpa é de todos e não é de ninguém.
Devíamos ser mais sérios: todos nós.
Os jornalistas colocando em causa a forma como institucionalizamos pessoas idosas, a legislação e os poderes de corporações que só respondem perante elas.
A segurança social que deveria refletir sobre a sua ação e que em nada tem contribuído para melhores cuidados e maior dignidade no envelhecimento.
O estado porque deveria finalmente legislar melhor copiando melhores exemplos de outros países e regularizando o que se faz nesta área sem compromissos com o sector social e preconceitos com o sector privado.
As ordens especialmente dos enfermeiros e dos médicos exigindo maior ética aos profissionais que representa não permitindo a sua ação desajustada e irresponsável nos lares de idosos e dando especial penalização a quem exerce a profissão em locais ilegais e sombrios.
As famílias que não devem continuar a temer represálias e tem a obrigação de denunciar as situações.
O ministério publico que deve levar mais a sério as denuncias que recebe de maus tratos e más práticas.
As provedorias de justiça e de defesa de idosos cujo papel é apenas fazer correr uma notícia anual nos órgãos de comunicação para nos lembrarmos que existem.
Os auditores que não se lembram de colocar como primeira justificação a incidentes do género de Reguengos de Monsaraz o não cumprimento da legislação que obriga a formação continua dos profissionais e que se perdem em problemas que estão a meio da pirâmide de maslow e não na sua base.
A Associação Amigos da Grande Idade advoga uma reflexão nacional e um programa de emergência (não mais um programa de emergência, mas um novo e renovado e inovador programa de emergência) para o envelhecimento em Portugal que inclua a analise profunda de:
1. Rede nacional de apoio ao envelhecimento que inclua cuidados de saúde primários, serviços de várias tipologias de permanência ou não para as pessoas idosas (centros de dia, cuidados domiciliários, cuidados continuados de longa duração, saúde mental, unidades de funcionalidade, lares de idosos e cuidados paliativos) e serviços hospitalares integrados, com liderança nacional e única.
2. Alteração do modelo de financiamento tornando equitativo e racional sem protecionismo a corporações e sem motivação para a disfuncionalidade.
3. Programa nacional de formação especifica para auxiliares, técnicos de diversas áreas, gestores, líderes de organizações.
4. Liderança regional e constituição de equipas regionais multidisciplinares.
5. Programa nacional de combate à ilegalidade e à exploração não licenciada de serviços.
As soluções existem, devendo apenas ser refletidas e discutidas. Mas há quem não queira sequer ouvir falar nelas, continuando com o discurso miserabilista da caridade e do assistencialismo.
A Associação Amigos da Grande Idade já sabe que poucos darão importância a esta comunicação o que nos prova que poucos se importam com o envelhecimento das pessoas mais queridas da família e com o seu próprio envelhecimento. É pena e lamentável, mas cada um fica com a sua consciência que continua a pactuar com a autênticas casas de morte que temos espalhadas por este país todo. O COVID 19 é só um alerta. O pior virá, com certeza.
Lisboa, 9 de Agosto de 2020
Direção da Associação Amigos da Grande Idade
Núcleo da AAGI Valpaços